Posted on 24/02/2020 by Ana Cristina Da Costa Diniz

Uma aula de yoga atípica


Uma aula de yoga atípica

Uma aula de yoga perfeitamente atípica

 

Fazia já um longo tempo que Ravi frequentava as aulas de yoga de Swamiji. Estava muito satisfeito com o mestre que tinha encontrado, maravilhava-se todos os dias com a pessoa sábia, matura, compassiva e humilde que procurara como seu mestre de yoga. Ravi não era daquela zona, o ashram de Swamiji ficava longe da aldeia onde habitava, mesmo assim era com total entrega e satisfação que percorria mais de quarenta quilómetros na sua pequena mota para praticar yoga com ele.

O próprio percurso era algo que o encantava todos os dias, sentia-se grato e tranquilo ao observar as montanhas Nilgiris que envolviam toda aquela zona no sul da Índia. Gostava daquele céu plácido, das árvores de chá, de sândalo, de café e dos eucaliptos, todos aqueles ricos aromas lhe enchiam os pulmões e a alma. O rio ladeava a pequena estrada de terra batida, fluía calmo, verde e límpido. A diversidade da flora era imensa, pequenas flores silvestres pintalgavam as planícies em volta das colinas baixas e as aves columbiformes, as garças e petinhas de coloração castanha esverdeada enriqueciam ainda mais as suas manhãs enquanto o acompanhavam no seu caminho. Ao longe, nas altas montanhas, era território do elefante asiático e um dos últimos habitats de solitários tigres selvagens. Tantas vezes lhe vinha à ideia a voz gutural de Louis Armstrong “And I think to myself … what a wonderful world”

Gostava dos seus colegas de prática, davam-se bem, era um grupo heterogéneo e cada um deles tinha algo peculiar a transmitir. No final da prática, guiados pelo seu professor, sempre entoavam um mantra que lhes fazia relembrar o valor da paz, do amor, da gratidão, da confiança.

Aquela manhã estava destinada a ser completamente diferente e incomum.

A sala do ashram onde praticavam yoga situava-se num terceiro andar duma casa modesta, para lá chegar passavam uma larga portada em madeira e ferro fundido, caminhavam por uma vereda onde sempre se espairecia um lânguido gatito, vizinho dum cão rabugento que nunca perdia a oportunidade de se fazer ouvir a quem entrava, e, finalmente, subia-se os andares até à sala da prática. Acontece que a sineta que assinalava a chegada dos alunos estava maioritariamente estragada, tocava, mas lá em cima o mecanismo que faria abrir a portada não funcionava.

Na sala aquietavam já os colegas de Ravi. Anjum era uma senhora extremamente meiga e doce, de poucas palavras, porém de sorriso constante e olhos que transbordavam mel. Arundhati, ao invés, era nova de idade e recente no grupo, manteve-se calada e provavelmente um tanto ou quanto espantada com o episódio que à sua frente se desenrolaria. Guinesh estava sempre confidente, radioso, robusto e com acentuado sentido de humor. Maya vivia aparentemente sozinha, nos seus sessentas, praticava há longa data com Swamiji, mantinha-se fiel, por vezes exigente e muitas das vezes com razão, acontecia que alguns colegas chegavam após o começo da aula e ela reclamava dos seus direitos, não pretendia ser interrompida nos seus exercícios e contemplações. Rabindranath fazia-lhe companhia, era ponto assente que os horários eram para cumprir, e se ele chegava sempre a tempo independentemente dos afazeres e preocupações, a sua história de vida fazia-lhe crer que dos outros o mesmo exigiria, certamente com uma indubitável razão. A jovem Anushka e seu vizinho Saroo, à semelhança de todo o resto do grupo, viviam nas imediações, contudo naquele dia não tinham conseguido ir.

Quanto à Ravi, desde a noite passada que a vida lhe corria drasticamente mal. Tinha tomado conhecimento que o seu melhor amigo se encontrava tragicamente doente, internado e em coma; tal foi a aflição e a tristeza que se apoderou dele que quase nem pregou olho lá longe na sua aldeia, mesmo assim cedo pela manhã meteu-se a caminho para o yoga que tão bem lhe fazia. Nessa manhã, chovia a potes e ele conduzia e chorava que nem podia. O céu negro, o rio cinzento, a terra batida enlameada e a motita mal se endireitava. Conduziu como podia, mal via, gritava até aos céus pedindo vida e proteção para o seu grande amigo, e pouco a pouco lá chegou ao seu destino, o ashram de Swamiji onde encontraria um abraço amigo no final da prática de yoga merecida.

Mas nem sempre a vida é previsível como é usual e desta vez Ravi tocava, tocava e a sineta não funcionava. Talvez por transmissão de pensamentos o seu mestre veio à janela e com ele falava, dando indicações para a portada abrir. Em vão. Já Ravi ponderava regressar a casa quando viu à sua frente seu mestre em pessoa, sorridente, solicito, agora coberto das vestes que para a prática não necessitava, calçava suas botas de chuva e fazia toda a vereda enlameada para o receber com o usual cumprimento “Seja bem-vindo!”. Ravi pediu sincera desculpa pelo atraso tão inusitado e ambos subiram os três andares que os separavam do restante grupo.

Porém, por esta única vez, o grupo estava atipicamente desordenado. Rabindranath exasperado, Maya indignada, a duas vozes reclamavam do seu tempo, do tempo roubado, duma compensação devida. Como que em pergunta resposta, se Rabindranath dizia que assim não continuaria, Maya exigia respeito e cumprimento do horário. Ravi desfazia-se em desculpas e dizia que tinham razão. Todos falavam, todos argumentavam. Guinesh falava em tolerância e complacência, Swamiji dizia que a razão não estava nunca de um só lado e apelava a que o yoga continuasse, era a portada que estava estragada e lembrava quão distante era a casa de Ravi. O desvairamento instalado.

Com custo o mestre serenou o grupo, ativou a prática, apelou ao alinhamento do ser e o poder do yoga subsistiu. Com calma relembrou a paz, a união e como cada um dos presentes poderia aproveitar a oportunidade que a vida nos dava para aprimorar e evoluir. A uns caberia Aceitar (Ksanti) aquilo que não podiam alterar, essa pacífica adaptabilidade de aceitar comportamentos e situações que não se pode mudar, e ainda relembrar que a prática é para nos ouvirmos a nós próprios e não nos voltarmos para os demais. A outros caberia provavelmente meditar sobre a Firmeza de propósito (Sthairyam) e sobre esse ardente esforço para obter um objetivo na vida sob quaisquer circunstâncias, sobre autodisciplina e austeridade (Tapas). A todos relembrou a Não-violência (Ahimsa), seja em forma verbal, de pensamentos ou mesmo factual. Além dela caberia também cultivar uma certa Purificação (Saucan), consistindo em atitudes e reflexões elevadas, evitando excesso de pensamentos negativos ou derrotismos. Não ficou de lado o Comando sobre o Pensamento (Atmavinigraha) relembrando essa possibilidade de se manter concentrado a cada momento e de evitar que a mente vagueie e tire o foco do que estamos a fazer.

Lentamente fomos alcançando um estado de equilíbrio e de mútuo respeito, e fomos conseguindo restaurar em nós esse Contentamento e Satisfação inatos (Santosa) que nos permite naturalmente apreciar e aproveitar o que de belo a vida tem.

E assim se prova uma vez mais que a dor também leva ao crescimento, que quanto mais erramos mais oportunidades temos de progredir e ainda … que uma aula de yoga perfeitamente atípica pode, na verdade, tornar-se numa prática de yoga atipicamente perfeita.

Boas práticas!

Cristina Diniz



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